
Adoro começos. Um dos meus maiores prazeres é ir a livrarias ou sebos para ler começos de livros. Dessa forma, acabo fazendo uma infindável lista de obras potencialmente interessantes. Lolita foi o começo mais arrebatador da minha vida. “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.” A versão em inglês então. Puro esplendor fonético associado a uma paixão derramada em palavras. Peter Sellers eternizou essa fala no filme de Stanley Kubrick. "Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.” Penso em comprar o livro em inglês apenas para ter o prazer de abri-lo para ler o primeiro parágrafo.
Quanto ao cinema, posso citar vários. O inglês Trainspotting (1996) e o americano A Marca da Maldade (1958) eram até então incomparáveis para mim. Surge então Cisne Negro. Seu começo traz consigo toda a entrega de Natalie Portman ao papel de Nina. Para interpretá-la, praticou muito. O take único do diretor Darren Aronofsky mostra o resultado de todo o esforço da atriz. O visual onírico criado pela iluminação é permeado por um deslizar harmônico da câmera que nos antecipa o caráter intenso da película.
Nina (Natalie Portman) tem uma profissão. É bailarina. Isso não é suficiente. Moldada para a perfeição, a jovem se depara como um desafio. Ser a prima ballerina da companhia em que dança. Para isso, precisa encarnar a “cisne rainha” do Lago dos Cisnes de Tchaikovsky. Precisão técnica não é suficiente.
Lago dos Cisnes é um ballet em quatro atos baseado em um conto de fadas alemão. Um príncipe apaixonado por uma rainha, Odette, transformada em cisne por um feiticeiro (uma ave de rapina). O resgate à condição humana da moça só será possível por um homem disposto a jurar amor eterno. O príncipe quebra o juramento declarando amor por Odile, uma feiticeira que aparece na forma de cisne (negro) e o encanta por sua dança. Resignada, Odette aceita a má sorte. Vê o arrependimento do príncipe e o perdoa. O feiticeiro, impotente diante de tanto amor, inunda o lago. Odette se transforma em cisne e o príncipe em um ato desesperado se afoga, morrendo por Odette.
Ser “cisne rainha” implica representar os dois cisnes. O equilíbrio entre os lados é a chave da sensualidade humana. O príncipe se apaixona tanto pela candura do branco como pela lascívia do negro. É forçado a uma escolha. Opta pelo tradicional quando já é tarde demais.
Nina é um cisne branco perfeito. É aquela mulher doce e resignada. Uma não contestadora. Aceita o domínio da mãe e não demonstra ser uma pessoa feliz. Sua obsessão, porém, é tamanha que está disposta a tentar ser quem não é para atingir seu objetivo.
Thomas (Vincent Cassel), diretor da companhia, sabe que Nina é sua melhor bailarina. Lamenta por não ver sua preferida como capaz de interpretar o cisne negro. Estimulada pelo mesmo, Nina direciona sua obsessão na tentativa de provar o contrário. Simula uma atração pelo diretor. Esse ato contestador já é o primeiro passo para uma mudança.
A nova bailarina da companhia é Lily (a belíssima Mila Kunis). Nome ironicamente escolhido (lily é lírio em português. Flor relacionada à Virgem Maria, em homenagem à sua pureza). Destila toda a sexualidade e desenvoltura que Nina não tem. É espontânea e despreocupada. Tem o charme próprio do cisne negro, capaz de abalar uma estabilidade amorosa de juras de amor. Puro veneno.
Nina é incapaz de vislumbrar que o resultado do seu sucesso é dilacerante. A bailarina veterana Beth Macintyre (Winona Ryder) foi corroída por esse processo. Vê, com olhos amargos, o que para ela foi a maior glória.
Amargos também são os olhos da mãe de Nina (Barbara Hershey). Quase sem expressões faciais, vive a frustração de uma glória não alcançada. Seu quarto contrasta com o lado infantilizado da filha, cheio de bichos de pelúcia. Palco permeado por uma violência entre mãe e filha tão estudada por Freud.
O título do filme remete ao obscuro escondido da protagonista. Nina aprofunda no universo do desconhecido e parece levar Darren Aronfsky junto. O projeto do filme torna-se ousado. Mostrar o processo autodestrutivo. Físico e psicológico. E para isso são utilizados elementos de terror cinematográfico. Estão quase todos lá. Os sustos, as imagens de espelho, o ponto negro ao fundo desfocado a se revelar, as cenas repetitivas, a mutilação e até uma transformação corporal (assim como acontece no filme de David Cronenberg, A Mosca). Tudo ao som de Tchaikovsky. O diretor vai tateando o conceito de alucinação, de uma forma até cansativa e não chega a atingir o mesmo efeito impactante conseguido em Réquiem por um Sonho. Isso não é problema. Nina é quem está perdida e não o Aronfsky. E talvez esse é o motivo de o filme ser tão bom. Natalie Portman deixa o espectador desorientado.
Darren Aronfsky é um diretor de detalhes, capaz de me abalar pela beleza de uma história como a de O Lutador com Mickey Rourke. É um diretor humano, demasiado humano. E assim falou Nietzsche. "Raramente se engana quando se liga o exagerado à vaidade, o medíocre ao costume e o mesquinho ao medo”.
A bailarina só queria ser perfeita. O advérbio “só” não atenuou nada. Privou-se de uma vida por isso.
